domingo, 27 de novembro de 2011

A Louça

  Um UNO vermelho de duas portas, parou em frente aquela casa de pintura verde envelhecia, e pedaços descascados como as rachaduras dos pés do vizinho. Buzinou. Um garoto de quatro anos saltara porta a fora na curiosidade de seus impulsos de um quase recém-nascido; Agarrara com toda sua força à grade do portãozinho branco, encostando o seu rosto ao arame posto por seu avô na primeira tentativa de fuga de Dick. Dick era o cachorro.
  Sua mãe ficara furiosa, afinal, dissera mais de mil vezes que não se deve abrir a porta para estranhos, ora essa! Correu na tentativa frustrada de conter a ânsia do menino. Tentativa frustrada e como era frustrada aquela tentativa. Antes que pudesse, mais uma vez, reclamar encarando os olhos fundos, fundos e verdes, verdes e vivos da criança, deparou-se com sua antiga vizinha e seu marido, ora não tão novos e viçosos como antes. Como eram, ou se esperava ser. Quer dizer, com a vizinha de sua mãe. A casa não era dela. Nisso, a velha, que agora sentada no sofá, pronta para o seu cochilo vespertino pós-almoço, se pôs a gritar “Silvia! Silvia! Silvia, minha filha – veja quem parou o carro na porta. Silvia!, tem gente chamando! Sil...”, Silvia já estava lá fora, mas ela insistia em gritar. Porque, meu Deus?! – Pobre Silvia. “Estou aqui, minha mãe!”, dizia incansavelmente conformada de que não adiantaria responder só uma vez – Ela nunca ouvia. Não ouvia, sei lá por que. Ela era quase cega e não surda; sempre reclamara quando alguém se dirigia a ela num tom mais alto. Vai entender...
  Lá fora, todos se abraçavam saciando uma saudade que não se sentia todos os dias. “Mamãe, adivinhe quem chegou!”, gritava Silvia falsamente entusiasmada. “Dona Zélia, mamãe!”, acrescentou. A velha, em movimentos quase parados, levantou-se com dificuldade do sofá de capa vermelha – abraçou suas visitas inesperadas, rogando sem medir folego as novidades. Zélia, tomada por súbita lembrança, perguntara sobre sua neta mais velha, que há muito, viu nascer. Por um momento não houve resposta. Noutro, foram interrompidas pelo barulho de seus maridos ao se reencontrarem. Logo saíram de cena, ganhando à calçada, onde por vezes, conversaram coisas de homem e sobre politica. “No quarto”, disse ela quebrando o milésimo de silencio que ali reinara. “Carol, está no quarto”. Assim, berrou desesperadamente a menina para que viesse desfilar a educação que lhe fora dada em tantos anos de criação. Essa é outra história.
- Olá, como vai?, dizia a moça abraçando de lado aquele corpo que depois de anos, o seu, não mais reconhecia. – como foi a viagem?!, Insistia num impulso de obrigação cordial.
- Estou bem, querida! Nossa! Como você cresceu! Respondeu Zélia, também, sem reconhecer a garotinha de meiguice desaparecida que um dia ela ajudou a criar.
O outro corpo assistia tudo com um sorriso de expectativa. De que? Bem, só expectativa. Um novo assunto surgiu. Carol, inexplicavelmente, num descuido de olhares daquelas arcaicas amigas, entrou novamente em seu quarto e fechou a porta para o mundo. Silvia, que banhava seu menino, passou na sala enrolando a toalha naquele corpo tão pequeno de algodão – ele sempre achava o máximo.
- Prepare o jantar, Silvia.
- Sim, meu pai! Está quase pronto. Disse olhando para o relógio que já marcava aproximadamente 7hs da noite.
Naquela mesa de seis cadeiras, todos se reuniram como se reúne um rebanho. Alguns com sopa, outros com café e leite – só um bebê que não havia entrado na história, tomava mingau na mamadeira. Carol no quarto, não sentia fome nas horas normais, digamos.
- Venha ajudar sua tia, Carol! Tem louça para lavar! – resmungava sua avó, batendo cuidadosamente na porta do quarto, receosa que as visitas ouvissem que era necessário pedir a uma moça já criada que colaborasse com os afazeres de casa.
- Já vou! Foram as únicas palavras. Pelo menos, as únicas que Carol disse em alto e bom som. Afinal, a louça sempre sobrara para ela. Apesar de não sujar, era sempre dela. Dela e de mais ninguém.
Ela nunca entendera esse negocio de ter que lavar o que o outro sujou. Seu coração nunca se conformou com essa coisa de lidar com os restos amargos dos outros, Mas, ali estava ela – pronta para lavar, enxugar, guardar, até que novamente se sujasse tudo de novo. E lavou, lavou, lavou.
  As visitas, agora, se despediam. Na cozinha não apareceram. Saíram apressados, pois, iria à casa de outro alguém, talvez sujar pratos, e seguir seu rumo.
  Toda a família acenava para o carro que sumia na pequenez da rua. Acenava como se acena para um trem.
  E lavou, lavou, lavou. Acabou. Carol voltara para a escuridão de seu mundo, ou melhor, de seu quarto – e dorme. E todos dormem, dormem e já é dia. Já é dia e tomam café. Horas mais tarde, sempre depois do almoço, alguém bate palmas na porta da casa: o menino, novamente, saltara porta a fora na curiosidade de seus impulsos de um quase recém-nascido, com aqueles olhos de ontem – fundos, fundos e verdes, verdes e vivos.



Tarcila Santana - 28 de novembro de 2011

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